domingo, 29 de setembro de 2013

A atitude vegetariana como forma de humanização


                                   Em um dos livros escritos pelo Antropólogo John Neihardat existe o relato da vida de um velho Índio Sioux chamado Alce Negro. Este velho Índio curandeiro, também chamado de “homem-medicina”, chefe da Nação Sioux, traça a história de dizimação e sofrimento de seu povo ao longo do século XIX. Em paralelo, Alce Negro retrata o seu desenvolvimento pessoal por meio do qual atinge à condição de Curandeiro. O curandeiro representava uma referência real para todo grupo. O sentido do “SAGRADO”, para estes povos, não podia ser dissociado da Natureza. Animais, plantas, folhas, montanhas, o vento, a água e os insetos, isto é, todos os elementos da Natureza tinham sua função e eram tratados com respeito por cada membro da tribo.    
                                  Neste relato intrigante fica nítido o sentido das relações travadas entre o homem e a natureza pelas tribos do Oeste Americano. Estas relações eram baseadas na harmonia. No conjunto destas relações, os animais, como um todo, eram respeitados com se fossem elementos essenciais para a sobrevivência do grupo. Eram respeitados não apenas em virtude de uma necessidade de sobrevivência grupal, ou seja, uma necessidade de cunho puramente material, porém antes, ora, por se apresentarem como um símbolo vivo do mundo. Os animais eram seres vivos que mereciam reverência e consideração como qualquer ser humano já que representavam elos da Natureza tão importantes quanto o próprio homem. Com efeito, os Bizões, ou búfalo Americano, eram cassados somente até o limite estritamente necessário para o sustento da tribo. Nem mais, nem menos, somente o necessário. A interrupção da vida dos animais, para algumas tribos, era uma espécie de ritual. Sabiam sobre o valor da vida e agradeciam ao alimento, deste modo, os índios comiam e estocavam a carne dos Búfalos para as estações mais frias e rigorosas. De seu couro confeccionavam roupas e seus ossos eram endereçados para a fabricação de artesanatos e outras utilidades domésticas. Nada se perdia. Antes e depois de cada cassada realizava-se uma oração e jamais a morte de qualquer animal significou um capricho para estes povos.
                               Não precisamos, é claro, romantizar esta condição humana do passado, pois sabemos que as guerras e os conflitos também eram (e são) parte da vida social dos grupos humanos por todo globo, muito embora tenham assumido um caráter catastrófico na modernidade. A Natureza é bela e obscura ao mesmo tempo. Seus polos revelam um contraste perturbador aos olhos humanos, pois suas antípodas estendem-se como tentáculos invisíveis sobre o seio da própria constituição psíquica de nosso ser. Luz e sombra estão a todo o momento buscando sua expressão no universo dos homens. Somos como pequenos reflexos tentando compreender o gigantismo e imensidão da existência, ora como lobos, ora como presas. O que se pretende frisar, no entanto, é a relação homem-Natureza tão belamente estabelecida por nossos ancestrais. Algo muito relevante para nós.
                              Nestas sociedades, é válido ressaltar, a relação de respeito entre os homens e os animais sempre prevaleceu, pois cada elemento da natureza tinha seu significado estabelecido na vida destes povos. Viver em meio a natureza significava, antes de mais nada, respeita-la e ama-la.  A compreensão do ritmo da natureza nascia da quietude interior. O fluxo da Natureza sempre apontava para a beleza da simplicidade da vida: o silêncio e a observação do mundo. Saber observar era muito importante. Contudo, muitas dessas coisas se perderam ao longo do tempo. Culturas foram massacradas, a tradição esvaneceu-se e o que nos restou foram os relatos de um mundo que já não mais existe, ainda assim, não podemos negar que nossos antepassados possuíam algo que hoje ignoramos, ou seja: A PERCEPÇÃO DA NATUREZA COMO UM ORGANISMO VIVO.  Tudo possui vida na natureza. Nada se exclui. Não existe algo como “não-vida” e isso ocorre independente de nossas classificações e crenças pessoais.  Todos os reinos da natureza tem a vida como elo inviolável e continuo.
                             Portanto, surge a indagação: por qual razão prevalece entre os membros da sociedade moderna uma tendência implícita em considerar nossa civilização como o produto final e mais sofisticado da história? Só por que temos Religião Institucionalizada, livros escritos, laboratórios científicos, prédios, carros, aviões, sapatos, luz elétrica, celulares e televisão, somos algo como “desenvolvidos”?
                             Tamanha seria nossa ingenuidade se considerarmos o mundo através deste único e restrito ponto de vista, pois as conquistas materiais são apenas os efeitos.  Talvez, por sustentarmos financeiramente frigoríficos e abatedouros sejamos tão iludidos com nossa técnica sofisticada de matar. Quem sabe? O desenvolvimento Técnico-Cientifico de nossos tempos é apenas a dimensão visível da transformação do mundo. Existe, todavia, uma contraparte psicológica, um reino pouco explorado e entendido, uma porção do homem não contida em livros, pois o sentido do abstrato não pode ser reduzido a um conceito teórico, embora o façamos como forma de orientação nas hipóteses que levantamos acerca de nós mesmos e da Natureza como um todo. Em termos outros, existe uma realidade interna que não estamos conseguindo compreender.
                            Por trás dos muros do intelecto, da razão, da emoção, da sexualidade e dos sentidos, existe uma memória, uma expressão, um motor que move o homem pelos meandros do mundo. Do que se trata afinal? Vivemos, basicamente, na periferia de nós mesmos. O “centro” de equilíbrio do ser humano esta profundamente abalado pela falsa imagem de mundo que construiu dentro de si ao longo da história. A carga genética que trazemos em nossos genes também possuem uma memória ancestral que se perde pelo véu do tempo. Desta forma, possuímos um condicionamento físico-psíquico profundamente arraigado em nossa constituição fisiológica, mental e até mesmo moral. Somos como uma espécie de Continuidade no tempo que raramente rompe com seu passado, ou seja, a memória de toda a humanidade. Nossas escolhas, muitas vezes, não partem de nosso “Livre-arbítrio”, porém desta memória que nos condiciona de um modo que pouco compreendemos. Em outras palavras, apenas saímos para vislumbrar o sol quando a escuridão cobre os céus, então, não raro, tateamos no escuro da noite para finalmente realizarmos nossas escolhas no interior de casulos que comumente chamamos “realidade”.  Portanto, o que nos move pelo mundo enquanto humanos? Somos conscientes de nossas escolhas? O que significa escolher o Vegetarianismo como modo de vida? Esta é a pergunta que deve ser feita, pois, acima de tudo, devemos estar cônscios de nossas escolhas. A atitude vegetariana é apenas parte de um PROCESSO maior, não um fim, porém um meio.




                                 A vida dos animais nas civilizações modernas passou a ser tratada através de um prisma completamente artificial, quer dizer, mais um objeto para uso e descarte humano, logo, um “alimento” que só pode reivindicar o direito à existência enquanto for lucrativo e saciar o paladar dos homens. Não é difícil percebermos este processo atroz e, sem delongas, atribuirmos nosso condicionamento biológico, como a exemplo do consumo de carne, ao modo e estilo de vida de nossos Ancestrais. Para minha pessoa esta é apenas mais uma armadilha, mais um mito, de nosso pensamento contemporâneo. Acreditando no fatalismo do consumo de carne apenas damos continuidade às forças cegas que nos movem pelo mundo e se confundem com “nós” mesmos. Não há, portanto, Rompimento, tampouco o que chamamos “Evolução”, somente uma continuidade horizontal, lenta e vagarosa de nosso desenvolvimento enquanto espécie, isto é, da memória grupal.  Evolução real exige um desprendimento completo dos hábitos, costumes, ideias e condicionamentos que preservamos como se fossem inevitáveis e reais. Pois, ora, caro leitor, nossa postura ética também se origina do Caos, ou melhor, do Caos evidenciado pelo planeta neste exato momento.
                                     O alimento, de forma geral, deixou de ser encarado como uma expressão VIVA da Natureza para converter-se em OBJETO. Tal é o caso. Consumimos carnes e peles, leites, cosméticos e especiarias de origem animal tal como trajamos nossas roupas, dirigimos nossos carros e usufruímos das benesses da energia elétrica. Fazer o que? Pois não foi exatamente este o mundo que nos “ofereceram” ao nascer, não é? O fato é que o vício do consumo desvirtuou nosso senso de REALIDADE enquanto homens. No fim das contas a sociedade firmou um pacto dentro da qual vendeu sua liberdade para adquirir uma embalagem e um rótulo.  Esta troca esta custando muito caro, pois estamos pagando com a própria vida. A felicidade esta nos shoppings, restaurantes e supermercados, jamais no Recinto Interior. Para que optar pela liberdade interior se temos dinheiro e então podemos comprar a felicidade que mora no mundo lá de fora? A ideia central vendida pela indústria moderna fundamenta-se sobre a ficção de que a Liberdade dos homens modernos reside em sua capacidade de consumir. Disso, já estamos fartos de saber. Como pode então, com o passar dos anos, este processo funcionar tão bem em nossas vidas? O consumismo esta disfarçado de poder, de status e consideração social. A indústria da carne é a apenas uma das partes mais obscura deste processo, pois antes de nos alimentarmos do produto, primeiramente, nos “alimentamos” dos símbolos que estes expressam. Nosso sofrimento inicia-se na imagem mental para depois se manifestar no corpo, assim, estamos sempre a um passo atrás, lidando com efeitos em oposição às causas.
                               O que simboliza o consumo de carne? O que simboliza a atitude vegetariana? Há tantas coisas a se pensar a respeito, tantas coisas que podem ser colocadas como motivos, tantas justificativas que uma nova venda surge para turvar nossas vistas. Mas a realidade é que estamos completamente viciados em nossos sentidos físicos e o paladar, nunca é demais salientar, é uma grande ilusão. Só é real enquanto existe o desejo, a necessidade, o hábito hereditário para o desfrute dos sentidos. A língua esta sempre a nos enganar, primeiro pelo fala, depois pelo que degusta. Assim sendo, o que realmente é capaz de nos saciar? O alimento? O símbolo? A atitude vegetariana? A necessidade de se expressar? No final, também vivemos em função do estomago e acabamos morrendo pela boca.
                           Há um manancial incrível de explicações históricas para as causas do fenômeno “civilizatório” no mundo moderno cuja principal consequência, dentre outras, resultou no intenso “afastamento” do homem em relação a seu meio natural, ou ainda: um “rompimento” total em relação á Mãe Natureza. A Tradição dos povos antigos converteu-se em uma espécie de superstição  social e o que nos restou do passado se reduziu a uma espécie de narração confusa, indireta e linear do tempo. Claro esta, todavia, que o termo “Natureza” não pode ser apreendido por meio de uma visão “romântica” do mundo e do universo, sequer como um conceito mental, um signo linguístico. Isso tem enredado o homem numa espécie de intelectualização oca e sem fim sobre o mundo. Tantas teorias e nem mesmo o paladar conseguimos controlar! Portanto, não podemos reduzir o significado do termo “Natureza” a um simples pensamento ou conjectura, deste modo, estaríamos acrescentando mais um tijolo em nossa muralha de ilusões.
                                O sentido central do termo “Natureza”, aqui, para nós, esta atrelado as FORÇAS e LEIS que permeiam todo Universo. São forças que aprisionam ou aperfeiçoam o homem. Liberta-nos ou nos condena. Tudo esta relacionado à nossa capacidade de percebê-las ou não. No centro deste drama universal estabelece-se o homem, o epicentro do caos universal, ora como corpo, ora como símbolo. O homem é como uma linha tênue esticada sobre dois mundos em franca expansão cuja face real nos escapa, portanto, nos contraímos e nos esprememos para, enfim, perder o equilíbrio. Caímos e o mundo todo se parece como um circo de loucos. Levantamo-nos novamente e a imagem que se tem é que já percorremos tal caminho, o espetáculo continua, no entanto. O homem é como uma ancora esquecida num oceano de incertezas circundado por monstros que a todo o momento desejam devorar suas almas.  Fugimos pela mente, depois pela boca e tudo que encontramos é mais um desafio. O fato é que a Natureza não nos permite ser senhores sobre aquilo que não conhecemos, desta forma, somos quase sempre um fantoche nas mãos do destino quando acreditamos que a velha e misteriosa Natureza reside “lá fora”; assim nos isolamos no “canto de cá”, no mundo subjetivo, e do lado de “lá”, se apresenta a Natureza como um grande enigma. Não seria a atitude Vegetariana também uma forma de quebrar esta dualidade? Um princípio de mudança que começa pelo paladar? A natureza não esta apenas lá fora, nos morros, nas estrelas, nas árvores, nos macacos, nas bactérias, nos mares, nos vulcões e cânions, pois ora, esta percepção é um equivoco da sintaxe, ou melhor, de nossa formatação cerebral hereditariamente condicionada, uma representação da vida, é fruto da frequência de ondas de luz que podemos perceber por meio de nosso sistema ótico, do conjunto de experiências e memórias pessoais que intitulamos minhas e “reais”. No fim, resta apenas uma personalidade montada, erigida e sepultada pelo tempo. Por que isso se parece tão real para nós? Talvez, porque seja a única coisa que hipoteticamente possuímos como real e isso é tudo. Por outro lado, o que existe de real é sempre o desconhecido, são horizontes sempre prostrados para além de nossas imagens mentais. O que chamamos por “Realidade” deveria ser substituída pelo termo “recorte”. Poderia, então, a dimensão real da Natureza residir dentro do próprio homem? Vamos caminhar juntos, caro leitor, olhemos sem medo para tal questão, pois ela é essencial. O Real só pode ser aquilo que é intrínseco ao ser, Imanente e inviolável, ou seja, aquilo que não esta sujeito ao tempo e a morte: nosso “Eu” real, e não nossa memória grupal formadora da personalidade. No fundo, Natureza e Homem são a mesma e única coisa, apenas se separam, fragmentam-se e se confundem na medida em que a MENTE racional atravessa nossa percepção do mundo na qualidade de sujeitos. Neste sentido, o termo “Natureza” passa ser apenas uma re-significação e não propriamente a Realidade. Quando afirmamos que amamos a Natureza, estamos amando a Ela própria ou ao conceito construído psicologicamente a seu respeito?
                                 De maneira geral, são os muros, os prédios, os conceitos e o artificialismo da vida que nos torna um ser mental e emocionalmente confusos. O sentido da Natureza ocultou-se por trás do nosso modo de vida, de nossas escolhas, do ser ficcioso que construímos em torno de nós mesmos. Este processo gerou, por assim dizer, uma completa “artificialização” de nossas vidas. Portanto, somos mais como OBJETOS REATIVOS dotados de pensamento e emoção do que realmente “humanos completos”. Isso significa que esquecemos algo imensamente precioso. Significa que existe uma experiência que não podemos CONCEBER por intermédio de nossa vida ordinária. Estamos submersos sob os meandros de uma vida moderna e mecanicista, linear e cheia de auto importância além de ser, acima de tudo: “institucionalizada”; ou seja, uma vida configurada com base nas instituições, seja nas cadeiras das escolas, nas portas a Religião formal, seja nos muros das Universidades ou então na estrutura familiar. As “fontes” de formação do homem moderno foram delegadas ás Instituições.
                                  Tal como o petróleo ao longo do século XX transformou o mundo em uma grande fonte de desperdício e poluição ambiental, o alimento, por seu turno, passou a ser visto como um mero “combustível” para a manutenção da vida orgânica de nós, seres humanos. Sem sombras de dúvida, esta atitude reflete um estado psicológico coletivo plenamente conturbado porquanto, veja só, nossa relação com os alimentos revela muito acerca de nós mesmos. Esta, talvez, é uma das razões em função das quais dificilmente compreendemos as culturas tradicionais ou o respeito à vida como um todo por elas estabelecidas. Não compreendemos por que estamos imersos sob UM ESTADO de coisas que nos faz prisioneiros. Primeiro nos escondemos por trás da mente, depois nos prédios das cidades, na alimentação, no trabalho, na família, nas relações interpessoais e, logo em seguida, vagamos em nossa própria perspectiva de MUNDO. Assim é que se dá. Como pode nosso mundo, ao longo da história, se limitar a um supermercado, a um prédio, a um leito de hospital, as farmácias e, variavelmente, à uma esporádica visita ao campo ou alguma praia isolada? Afinal de contas, qual o rumo que estamos tomando? Aonde o vegetarianismo se encaixa? O que, de fato, representa a atitude vegetariana? A resposta é simples: não compreendemos a natureza enquanto sujeitos psicologicamente isolados. Em outras palavras: esquecemo-nos de algo essencial. Perceba leitor, que nossa relação com a natureza esta partindo de uma referencial diferente, de um prisma invertido, ou seja, à distância. Não nos compreendemos como ELOS, porém como “linhas” paralelas aos “outros” ou ao mundo. Isolamo-nos psicologicamente e estamos sofrendo por isso. Nossa perspectiva de mundo esta partindo de um conceito, de uma ideia, não pela vivência e descoberta. Somos, neste sentido, tão primitivos como nossos antepassados. A mente esta de um lado da estrada, nosso coração de outro, no meio do caminho perambulam os homens tentando se encontrar em meio a um universo de mil faces. Como diria Shakespeare: “choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes”. O ser humano ainda é um projeto em construção, eis do que estamos tratando.
                             Portanto, a viagem realizada pelo homem moderno deve estar direcionada ao reencontro, à redescoberta, ao vislumbre e a Contemplação. A mudança real acontece a partir de UMA NOVA FORMA DE PERCEBER O MUNDO. O vegetarianismo é uma consequência desta PERCEPÇÃO. O Vegetarianismo é uma atitude prática, simples e cooperativa, sua dimensão ética reconecta o homem a um estilo de vida simples e sensato. Não precisamos de muito, o acumulo apenas nos prende com seu peso ao mundo. Não estamos fazendo apologia ao Vegetarianismo, romantizando uma escolha, ou simplesmente enaltecendo um modo de vida, uma escolha do sujeito, pois ora, vejamos o mundo caro leitor, ele esta morrendo, perdendo sua “saúde”; portanto, precisamos de pessoas práticas, de pessoas que vivam de uma forma consciente, de pessoas que pensem o mundo pautadas numa ÉTICA UNIVERSAL.  Estamos falando da RECONSTRUÇÂO do sujeito e da atitude vegetariana como parte elementar deste projeto de homem. Estamos falando do resgate da vida, do respeito pela natureza, do alimento que ingerimos como uma forma de transformação positiva do mundo. Não mais podemos separar nossa ética, nossa alimentação, nosso pensar, nosso agir, nosso querer, nosso ser, ou seja, a maneira que agimos no mundo como se fossem sítios divorciados de nosso universo pessoal. Devemos deixar nosso ser fragmentado de lado, abrir mão do nosso ritmo de vida mecânico, admitir nossa rica capacidade de expressão, pois nossa reconstrução é um processo que parte da Autodescoberta. A transformação pessoal floresce de escombros, ruinas, cacos e pedaços. Mas também de pequenos gestos, atos, simples atitudes. Tudo isso é uma forma de preparação para algo maior, algo real, sem fantasias e desprovida de desvairos: um reencontro com nós mesmos! É como um mergulho no passado, mas em um mundo diferente. Não precisamos voltar a viver em cavernas para restabelecer o equilíbrio, pois agora temos um mundo diferente em nossas mãos, temos um aprendizado maior em virtude de caminhos que não devem mais se seguir. Temos alternativas! As sementes estão aí, semeadas pelo mundo. Para tanto, o vegetarianismo não pode ser reduzido a um capricho egocêntrico, demasiadamente pessoal, meramente focado em si mesmo, pois repito, o vegetarianismo é um meio e não um fim em si mesmo. A dimensão ética da atitude Vegetariana é enobrecedora além de representar um elemento vivo da Compaixão, ato sublime dos homens. O vegetarianismo é parte deste PROCESSO humano de emancipação, pois O VEGETARIANISMO É UMA FORMA DE HUMANIZAÇÃO DO HOMEM.
                                    Estamos, como indivíduos, tentando compreender a NATUREZA de forma indireta, ou seja, por meio da Racionalidade e da Emocionalidade enquanto forças motrizes divorciadas de nossa Percepção. Normalmente, tudo isso é encarado como óbvio, algo pronto e definitivo. É irônico observar como nossa Racionalidade se confunde, se complica e se perturba ao perceber que não pode se auto-realizar enquanto elemento isolado no mundo. Quando o homem se sente psicologicamente isolado cultiva, paralelamente, as raízes do medo em seu coração.  E o medo destrói nosso senso de dignidade. Sim, caro leitor, a sensação de isolamento psicológico, tão comum em nossos dias, pode ter origem através de nossa profunda desconexão com a Natureza.
                              Tudo que se isola na Natureza esta predestinado a Reintegração. Cedo ou tarde os elementos voltam ás suas respectivas causas, retornam a sua origem, o homem finalmente mergulha em sua própria memória e se depara com todos os personagens de sua vida, as estrelas explodem e se desfazem em poeira cósmica, as maiores árvores esvanecem-se, secam e morrem, a borboleta sai de seu casulo, encontra a liberdade para então morrer dentro de algumas semanas. Tudo é um entre um milhão de caminhos como dizia um velho Índio Yaqui do México. O inconsciente humano é como uma ave de arribação: sem origem e destino certos. Guia-nos pelo mundo como se fossemos uma carruagem desgovernada pairando sobre continentes e  oceanos, ora sonhando, ora desejando, ora amando, ora sofrendo e desejando mesmo a morte. De um ponto a outro, nossa existência se manifesta como um ato singular e universal da Natureza. Talvez, no fundo, o mundo inteiro assemelhe-se ao corpo humano, pois no fim tudo retorna ao ciclo vital do ecossistema: decompõe-se até tornar-se algo inexistente aos olhos. Como o processo da vida é realmente incrível. Hoje, estamos escrevendo textos, amanhã, vivendo no desconhecido. O futuro é uma representação realmente intrigante e espantosa, pois onde tudo parece se encaixar a mão do destino embaralha novamente as cartas. Projetamo-nos no futuro e deixamos de lado o presente. Tentamos vivenciar o presente e, por outro lado, o que temos é um ser frágil e duvidoso, ou seja, uma espécie de passado se passando por “agora”. Aonde nos situamos na teia do tempo, caro leitor? Nossos destinos se encontraram aqui e este é um fato incontestável.
                                    Precisamos deixar claro que a atitude Vegetariana é mais do que uma escolha pessoal, pois também é um principio de Compaixão. Compaixão é desprendimento de si mesmo, é uma forma sincera de autodoação, coragem e visão de mundo. Somos seres egocêntricos e isso nos limita enquanto seres humanos. Mas, acima de tudo, somos uma POSSIBILIDADE INFINITA de evolução. Eu sempre friso esta frase em meus textos, pois não podemos nos esquecer disto. Não basta negar nosso egocentrismo por meio dos conceitos preexistente em nossas mentes, de uma pretensa auto piedade, pois nosso ego se manifesta nos atos mais invisíveis e pequenos. As questões ambientais, sociais e politicas sobre as quais a pratica Vegetariana exerce profunda influência é apenas o efeito de uma atitude que possui motivos pouco compreendidos, motivos mais profundos e recônditos em nosso interior. O vegetarianismo como uma forma de humanização esta intimamente atrelado a nossa tentativa de reconstrução do mundo. Queremos isso para nós, para nossos filhos, para nossos irmãos que vivem por toda terra. Queremos um mundo baseado em princípios reais, não fictícios; para tanto, a expressão maior deve partir de dentro, do coração, de nosso intimo mais sagrado. Assim, podemos dizer: estou vivo!
                                  Finalmente, para se ter uma simples ideia de nosso desafio rumo a liberdade eu cito um exemplo espetacular que vejo pelo mundo: os Raja Iogues Indianos. Para os Iogues indianos a vegetarianismo é uma extensão de AHIMSA, ou seja, o que trivialmente conhecemos como “não violência”. O termo Sânscrito AHIMSA tem um sentido muito mais vasto do que o comumente traduzido para o português, pois esta relacionado à prática de austeridade baseada no respeito por TODOS os seres vivos, seja pessoas, animais ou plantas tal como o respeito voltado para si mesmo ao se evitar pensamentos negativos. Respeito e Compaixão sãos as bases de AHIMSA. Desta maneira, o vegetarianismo é apenas um simples, porém relevante decorrência desta prática Maior. AHIMSA é parte do primeiro estágio da CIÊNCIA do RAJA IOGA. Este sistema de IOGA foi prescrita pelo Rish (sábio) da Índia antiga chamado “Patanjali”. AHIMSA é um dos “braços” de YAMA. YAMA, por seu turno, é composta de AHIMSA, SATYA, ASTEYA e BRAHMACHARYA. A prática de Yama, no entanto, é somente a primeira dos oito estágios subsequentes, ou seja, é apenas uma preparação, é a base que se constrói no ser humano para a conquista de “SAMADHI”, isto é, a liberação completa da mente. A destruição total e completa da ilusão do mundo que nos sustenta enquanto sujeitos reais.
                         De fato, ao se analisar a Ciência do Ioga como um processo prático de emancipação da consciência humana, pois todo processo é baseado em uma verdadeira técnica, sinto-me como se fosse ainda um embrião, um pálido esboço de homem, um projeto mal acabado de ser, ainda tentando remodelar o paladar e os pensamentos. É incrível como ao tomar contato com algumas filosofias e práticas ascéticas pelo mundo antigo, ainda que teoricamente, fico intrigado com este Universo “tão fantástico aos nossos olhos”. Como sou pequeno e minúsculo! O mundo me fascina e cada vez mais percebo a extrema necessidade de EVOLUÇÂO CONSCIENTE de nossa espécie. Não há outro cominho para a auto-realização. A Natureza nos “empurra” até certo ponto, contudo, a partir de certos estágios dentro das cadeias evolutivas do Universo, somos nós quem decidimos o que fazer com o nosso tão estimado “livre-arbítrio”, pois é como indivíduos que tomamos nossas decisões e arcamos com as consequências de nossos atos e assim, ora, podemos despontar para alturas que sequer nossos horizontes mais vastos poderiam abarcar com sua rica imaginação. Não é a fantasia, porém a PERCEPÇÃO que nos deve guiar. Existe um conhecimento no mundo que só pode ser acessado por meio de uma busca incessante e sincera, uma busca que parte do coração dos homens. Este conhecimento esta reservado aos homens que são capazes de se doar e esquecer-se de si mesmos. Quem esta disposto a tal beatitude? A vida é um eterno Sacrifico e exercício de Auto Entrega. A Tradição-Sabedoria esta presente na essência das maiores conquistas da humanidade e, no final, somos apenas pequenos peregrinos a procura de seu lugar ao sol; não obstante, uma decisão é imprescindível: que rumo devemos tomar? Há tantos caminhos como pessoas pelo mundo afora e o que nos cabe enquanto sujeitos é converter nossas ideias, pensamentos e projetos em atitudes práticas, em ação, isto é, precisamos plantar uma semente. Esta semente será o mundo de amanhã. Esta semente será nosso legado á humanidade, pois ainda que nossos corpos desapareçam pela imensidão do mundo e finalmente se renda ao poder absoluto do tempo no ato final da existência, as ideias sinceras e fieis, por sua vez, permanecerão vivas no coração dos seres humanos por eras inteiras. A humanidade é como uma grande memória que se regenera incessantemente. Assim só podemos atingir a vida eterna através dos atos que partem do recinto SAGRADO, dos atos que partem do coração. Somente somos vivos enquanto podemos amar. Apenas pelo AMOR INCONDICIONAL nos tornamos Imortais. A semente que plantamos decidira o inicio sadio de uma sociedade que surge pelo planeta ou o fim trágico de uma civilização que fenece. Estamos psicologicamente doentes, mas temos um poder imenso em nossas mãos. Tudo esta interligado. Tudo é uma teia intrinsicamente entrelaçada, imensa e poeticamente bela.  Tudo é um entre um milhão de caminhos! No universo o que se separa, cedo ou tarde, reintegra-se. É uma LEI da vida, da Natureza, que o fim reconecte-se com o principio. É o circulo que se fecha, é a serpente que morde a própria cauda, é o simbolismo universal que jamais perece. São as antípodas que se cruzam no final e de seu toque perpetua-se a vida como num ato magico, é a longa vida de uma estrela que se dissolve no Éter Universal para que então tudo volte a ser perfeito como no principio: Vazio, Completo e SAGRADO. Assim, talvez um dia, voltemos a viver como os Iogues da Índia Antiga ou como aqueles velhos e Sábios Xamas do Oeste Norte-Americano, ou seja, com os pés tocando a terra, mas a mente, a verdadeira mente, tocando as estrelas. Tudo isso no silêncio da contemplação.
                             Esta é minha mensagem a todos vocês que chegaram até aqui. Obrigado de coração pela leitura. Que Deus, a eterna NATUREZA inconcebível presente no coração dos homens, abençoe nossas vidas com o dom da Sabedoria e da Liberdade e que a Paz seja nosso destino como homens. Obrigado novamente. Dedico á vocês uma mensagem de nosso querido Índio Xama Alce Negro:

"Eu continuava montado no meu cavalo baio, e de novo me apercebi dos cavaleiros do oeste, do norte, do leste e do sul em formação atrás de mim, como anteriormente, enquanto nos dirigíamos para leste. Olhei em frente e vi as montanhas cobertas de rochedos e florestas, e das montanhas faiscavam todas as cores até aos céus. Vi-me na mais alta montanha de todas as montanhas e lá embaixo, a toda volta, estava o Círculo completo do mundo. Enquanto ali estive, vi mais do que posso contar e compreendi mais do que consigo ver, pois enxergava no espírito, de modo Sagrado, as formas de todas as coisas, e a forma de todas as formas tal como devem viver juntas, como um único ser. E vi que o Círculo sagrado do meu povo era um dos muitos círculos que faziam um só, vasto como a luz do dia e a luz das estrelas. E no centro crescia uma imponente árvore florida para abrigar todos os filhos de uma só mãe e um só pai. E vi que era sagrada."




segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A ILUSÃO DO "EU"

A ilusão do “eu”.

                             Para todos aqueles que doarem uma pequena parcela de seu tempo para ler o que compartilho agora com vocês, quero dizer primeiramente e antes de mais nada o seguinte: Estamos sendo escravizados em todos os setores de nossas vidas! Estou falando do condicionamento cultural, social, político e hereditário. Falo do controle psíquico praticado pela mídia de massa, pela hipnose perpetuado pelos Governos e, finalmente, pelas crenças e superstições que sustentamos como se fossem convicções irrevogáveis aos nossos olhos, muito embora não passem de uma conseqüência direta destas mesmas forças condicionadoras que ressalto. Porque, em sua grande parte, “invisíveis”, tais condicionamentos penetram até as entranhas de nosso inconsciente; portanto, ora, o que somos capazes de identificar neste universo de farsas, quando muito, esta no nível da linguagem e dos efeitos, as raízes estão além dos esforços perpetrados pelo pensamento. Neste sentido, não somos livres. Não podemos ser. De fato, somos literalmente violentados pelos símbolos e pela informação. O que pretendo dizer é que nossas convicções assemelham-se muito com castelos feitos no ar, ou mesmo como os cristais, lindos e belos, porém frágeis e quebradiços quando desmoronam e se convertem em cacos dispersos. Assim, somos como as taças de cristais, vaidosos por fora e ocos por dentro. Com efeito, uma das maneiras mais simples de se reconhecer a verdadeira natureza de um homem é diante das circunstâncias em virtude das quais ele é exposto a uma situação de risco ou de poder, pois as máscaras sempre caem na iminência de uma mudança drástica, uma tragédia, ou ainda, no confrontamento das convicções de um homem. Neste panorama, umas das convicções mais prosaicas sustentadas pelo senso comum são:
1° - “O mundo criado pelos pensamentos e pelos sentidos são reais”;
2° - “A matéria é densa”;
3° - “Aquilo que não percebo pelos meus sentidos físicos não existe”;
4° - “A sensação de prazer (ou acumulo) é sinônimo de felicidade”;
5° -“A crença no futuro”;
6° - “O homem não pode conhecer a morte”;
                   Estas são algumas crenças entre muitas outras que se cristalizaram em convicções pessoais ao longo dos tempos. Não vou discutir as causas já que existem dezenas de livros por aí que tratam do assunto. O fato é que estas crenças estão arraigadas no inconsciente social e a ruptura com tais conceitos pressupõem inevitavelmente uma RECONSTRUÇÃO COMPLETA do sujeito. Este é o ponto de partida. Muitos de vocês, que agora lêem o meu texto, já devem ter presenciado ou passado por uma situação dessas, em casa, na rua ou na esfera política ou com vocês mesmos, seja lá a forma que isso tome no seu dia-a-dia, onde a crença move literalmente o comportamento do sujeito e a NEGAÇÃO surge como resposta geral ao que não se APREENDE pelo pensamento comum baseado em imagens mentais cristalizadas. A imprevisibilidade do mundo é sempre um teste irônico para nós. É sempre um jogo que pode nos partir ao meio caso não estejamos atentos. Por estas e outras razões, quando uma crença desmorona em nosso interior, na maioria dos casos, converte-se em uma experiência traumática de vida. Em outras palavras, somos seres traumáticos porque não sabemos viver. Assim o é.
                       No fundo, meus amigos, é preciso deixar claro uma coisa: o que chamamos de “minha vida”, “meu eu” ou de “minha existência”, infelizmente, não passa de uma impressão psíquica, ou seja, se apresenta como um enredo linear, artificial e ilusório construído por cada um de nós ao longo do respectivo desenvolvimento pessoal de nossas vidas, muito embora, há que se dizer, faça todo sentido para “nós”, diga-se, “eu” e “você”, pois nossas vivências e impressões mundanas se encaixam e se fixam em nosso universo de significações pessoais como se fossem “peças” reais e definitivas de nossa realidade psíquica enquanto sujeitos, sejam estas experiências prazerosas, dolorosas ou indiferentes aos nossos olhos. Mas tudo, tudo mesmo, é registrado pela mente inconsciente e, variavelmente, surge como angustia, depressão, violência ou mesmo patologias como o câncer em nossas vidas. Da atitude ríspida da professora no jardim de infância para conosco ao primeiro ato sexual e morte de nossos entes queridos, tudo é registrado como impressão, ou ainda, uma “onda de choque” pelo aparelho psíquico. Deste modo, quando “algo” não se encaixa neste sistema linear que criamos, floresce o fenômeno da dúvida, ou ainda, o que habitualmente chamamos de “loucura” ou “alucinação”. Irrompe-se uma angustia indescritível “sem causa” ou uma necessidade inexplicável de busca por respostas. O fato é que cada sujeito REAGIRÁ de uma maneira diferente de acordo com seu temperamento, de sua personalidade. Nosso cérebro, ou melhor, nosso aparelho psíquico condicionado, faz com que a linearidade de nosso pensar transmita uma impressão de unidade de nossa existência enquanto seres humanos quando na prática o que, de fato, realmente somos, não passa de “fragmento”, ou ainda, uma nota desarmônica solta pelo mundo. Não existe unidade psicológica no sujeito comum, porém, antes, milhares de seres autônomos sobrevivendo em nós mesmos. O que denominamos trivialmente como “eu”, ou “minha personalidade” é uma espécie de alucinação, uma construção psíquica dissonante, um fantasma conceitual. Como fantasmas podem conquistar a auto-realização, a paz e o verdadeiro conhecimento? Somos como peças de cristais estilhaçadas que buscam uma reconstrução, um novo começo, uma resposta, o fim do sofrimento!    
                        Quero deixar claro que, de certo modo, não existe nada de novo no que escrevo tal como não reivindico a posse destas palavras, pois o próprio BUDISMO (Mahayana), a CIÊNCIA do YOGA entre outras fontes da Tradição-Sabedoria Universal tão antigas quanto o próprio homem, ressaltam em seus Tratados da Psique Humana este processo, ou seja, a ilusão do “eu”, não como teoria como pretende a Psicologia moderna, mas como uma realidade observável. Nosso “eu” é uma ilusão. Logo, apenas (re)apresento, aqui, estas idéias na forma de um esboço geral. Esta é minha proposta de trabalho.
                    Deixo claro que o motivo pelo qual escrevo se deve a NECESSIDADE de compartilhar algo com meus irmãos, vocês, que agora lêem estas linhas, pois ora, não podemos mais nos OMITIR, pois não sabemos quem SOMOS. A omissão também nos faz carrascos do mundo e de nós mesmos.  Se a morte, a notícia de um câncer, uma doença terminal qualquer, ou ainda, a notícia do falecimento daqueles que nos são mais caros no mundo batessem em nossa porta agora, neste exato momento, qual seria a primeira reação? Qual? O que nossos corações e mentes diriam? Provavelmente ofereceriam uma resposta antagônica, contraditória, pois cada qual, coração e mente, seguem um caminho próprio, díspar, paralelo, tanto pelo mundo como em nosso labirinto interior. Tudo o que nos resta é um SISTEMA PROGRAMADO de reação. Para a maioria de nós, portanto, a reação prática a esta pergunta não seria nada além de sofrer, nada além de mais um trauma jogado a revelia ao insciente, nada além de uma preciosa energia que se desprende de nós, enfim, uma fuga psíquica da realidade! Existe algo errado e muito perigoso neste processo: não temos controle sobre nossas emoções e pensamentos.  Por que isso soa tão natural a nossos ouvidos? Já nascemos com este distúrbio em nossos genes?
                         O sofrimento também se origina a partir de nossa incompreensão da morte e da vida, pois o homem definitivamente (re)age como se a morte não existisse, ou melhor, como se  não fizesse parte do PROCESSO MAIOR da existência, isto é, como se situasse aquém da Natureza e de suas LEIS INEXORÁVEIS; portanto, morremos todos os dias sem nos darmos conta disto. Estamos morrendo não como uma metáfora ou uma alegoria, mas como seres reais, como estivéssemos desperdiçando um dom precioso, uma oportunidade de emancipação real. Jamais nossa escravidão mental será contestada desde que não á vejamos, ou ainda, desde que não a identifiquemos e façamos algo. É como se gritássemos asperamente ao mundo: prefiro a escravidão a enfrentar a realidade como ela é! Com efeito, jamais haverá liberdade se conservamos uma vida de servilismo aos sentidos, baseados na “necessidade” e na “falta”. Talvez, a inconstância e o medo seja a característica predominante nos homens. No entanto, existe uma reposta pronta para quase tudo. Esta é geral: a revolução será amanhã, NUNCA hoje, jamais agora, pois não temos TEMPO e o mundo exige demais, tenho que comer, acasalar e satisfazer meus caprichos, pois tenho um ego e uma barriga que precisa de alimento! Isso na hipótese da revolução ser direcionada ao interior.                 
                        Acontece que deixamos de encarar a morte e a vida como parte de um fenômeno INDÍSSOCIAVEL da EXISTÊNCIA, duas antípodas que se fundem no final para nos ensinar que nada permanece intacto no reino do tempo. É irônico, ontem eramos apenas crianças sonhando com o futuro, hoje perseguimos o futuro para reviver o ser que eramos no passado e o maior tesouro, nosso presente, é reservado às esperanças, sonhos e expectativas que mal podemos compreender. O que o mundo pode reservar a cada um, caso o conflito psicológico não seja superado? Tudo será uma eterna repetição! O mau também germina pelo mundo enquanto nos escondemos por atrás da omissão do silêncio. O silêncio desprovido de austeridade não significa muita coisa.  Precisamos caminhar juntos, e isso é tudo.
                       De modo geral, desde que sejamos capazes de “visualizar” nossas experiências passadas e suas impressões inconscientes registradas em nosso aparelho psíquico, como grandes espelhos, batizamos seu efeito de “eu”, “você” ou “nós”. Também existe uma força, uma imagem, um “fantasma coletivo”, um arquétipo que permeia nossa visão de mundo - alguns autores discutiram muito sobre isso, mas não nos convém atermo-no a conceitos e teorias neste momento. Em certo sentido, veja só, isso, ou melhor, este fenômeno que chamamos de “eu” é puramente uma espécie de memória, ou melhor, uma imagem mental, uma superstição passageira, algo não-existente por si mesmo. Faça um exercício agora, olhe para seu passado e perceba que seu sentido de “eu” é como um movimento do pensar, buscando imagem após imagem, revirando os escombros da memória, como um acúmulo de experiências, impressões e angustias. Ao lançarmos vistas em direção ao nosso passado cavamos, respectivamente, um sentido para o resultado FINAL de nossas experiÊncias pessoais, ou seja, uma falsa unidade chamada de “eu”. Em outras palavras, uma programação. O que chamamos de “eu” é o lado mais obscuro de nosso inconsciente.  Neste caso, é muito provável que sejamos justamente o que não podemos definir. Onde não existe palavras, símbolos e conceitos, lá estamos nós. Neste sentido, o que entendemos por “homem” não passa de um conceito mental pertencente ao tempo. Sim, ao tempo, nosso “eu” é fruto do tempo. Conseqüentemente, o que chamamos de morte não pode representar nada além da destruição total do individuo. O fim de nós mesmos, a finitude do conceito, da idéia, da experiência, da imagem mental.  Para tanto, a sensação, o pressentimento, a visão, ainda que turva e distante, de nossa mortalidade é o inicio do caos interior. A mortalidade nos amedronta inconscientemente a todo o momento. Este pressentimento, acredito, é primitivo e atávico, ou seja, é passado de geração em geração por nossos genes. A mortalidade pertence ao tempo. A essência do tempo é movimento e transformação perpétua. Estamos à mercê de um monstro que a tudo devora e não podemos fazer nada senão negar esta escuridão horrenda! Poderia o destino dos homens apresentar uma tragédia ainda maior? É pouco provável.
                      Não existe liberdade. Não pode existir liberdade ao passo em que somos sustentados, enquanto indivíduos, por uma imagem mental, uma impressão, um conceito difuso de “eu”, enfim, um acúmulo de experiências passadas. Em última instância, não possuímos existência real, pois o observador é uma ilusão! Somos memória, ou caso queiramos satisfazer os sentidos físicos, somos apenas este corpo que conseguimos visualizar. Nada, além disso. Em contrapartida, é difícil entender até que ponto tais experiências pessoais, ou seja, a prisão psíquica que chamamos de “eu” pode edificar e forjar nossa visão de mundo; além do mais, podemos passar horas e horas conjecturando se realmente a experiência humana neste planeta pode conquistar para si a capacidade de compreender a verdadeira natureza das coisas dotada, por seu turno, de uma clareza completamente destituída de superstições, já que nossos pensamentos e emoções são tão traiçoeiros como bem sabemos. Eu penso e sinto que sim. Minha resposta é positiva, o homem (real) pode conhecer a essência das coisas, haja vista que para mim - e eu preciso dizer e deixar bem claro - o homem jamais deixou e jamais deixará de ser uma “POSSIBILIDADE INFINITA DE CRESCIMENTO E EVOLUÇÂO” espiritual. Jamais! Somos pontes e não um fim. Não obstante a ilusão, a cegueira e, sobretudo, a sensação psicológica de ISOLAMENTO que nos aprisiona ao mundo e nos arrasa por dentro sejam os únicos horizontes que podemos enxergar nesta condição de letargia espiritual que nos assalta a alma. Viver é um eterno sacrifício. Evoluir também é perecer, pois deixamos “cascas” ao longo do caminho, cascas que já se confundiram com “nós” mesmos. Não podemos carregar nos mesmos ombros Deus e o Diabo, o fogo e a água, a duvida e a convicção. É mister uma escolha, uma decisão, tomar um partido. Saber viver.
                       Acima de tudo, entretanto, não devemos esquecer que NÓS, ou seja, a essência por traz do conceito, a luz por traz do véu da personalidade, e ninguém mais, escolhemos passar pela experiência neste (multi)universo dimensional, portanto, somos inteiramente RESPONSÁVEIS por nossos êxitos ou fracassos. Nossa meta sempre será o aprendizado. É inegável que existem inúmeras forças no cosmos que jogam com o ser humano a todo o momento, em toda sua jornada, e sejam estas forças consideradas moralmente como o bem ou o mal, o equilibro final cabe a nós restabelecer. O ser humano é o epicentro da crise e do caos e ninguém, a não ser nós mesmos, é responsável por nossos atos, pensamentos e ações, independente da condição que nos encontremos, seja num palácio, num castelo, dentro de uma mansão, ou dentro de uma caverna, choupana ou tapera. A causalidade é nossa LEI maior. Penso, por vezes, como seriamos infinitamente mais justos para conosco mesmos e a nossa Mãe Terra se realmente enxergássemos a grande responsabilidade de se viver, de estar aqui, de estar experenciando o mundo, de ser consciente, de poder agir. É um crasso engano acreditar que podemos escolher enquanto escravos, pois, submersos nesta condição, somos apenas condicionados pelo PENSAMENTO, isto é, pela mente, pela programação e, deste modo, apenas REAGIMOS à estímulos exteriores. Somos seres de caráter sensorial. Será que a experiência humana comum neste mundo pode libertar o homem de seus preconceitos, limitações e ignorância? Será? Ou é necessário que haja uma ruptura completa com o que chamamos de realidade para que tal suceda? O que significa romper? O que significa agir? Viver desprovido de qualquer resquício de medo é possível?
                          Muito embora a ideia de sermos escravos disso ou daquilo retumbe como óbvio ou até mesmo como um clichê para alguns sujeitos “bem informados”, o que posso dizer é o seguinte: “Estar Consciente” é essencialmente diferente de concordar mentalmente com este ou aquele pressuposto, ou ainda “pensar” ou “refletir” a respeito deste ou daquele fato, pois opiniões e argumentos possuem raízes comuns na mente humana, estão germinando através do pensamento e das crenças pessoais, do “sim” e do “não”: nosso eterno binário mental. Como é aterrorizante a conclusão de que somos como máquinas programadas pelo tempo e desprovidas do poder de escolha porquanto apenas REAGIMOS aos estímulos do mundo! A mente é como uma instalação alienígena que nos guia em direção a autodestruição e conflito perpétuo. Como pode a mente condicionada fazer alguma idéia do infinito, de DEUS, ou mesmo da realidade deste planeta, nossa querida Mãe Terra?  Impossível.  O que restou à grande parte dos homens foram as discussões teórico-intelectuais a respeito da realidade ou existência disso ou daquilo e assim por diante. A religião entendida meramente por intermédio do intelecto se reduz a uma grande piada, se entendia com a emoção, se transforma em mero sentimentalismo.  Conhecemos muito bem o resultado deste processo: fundamentalismo e intolerância! O próprio ateísmo, por extensão, parte da mente, se origina de um conceito de caráter mental, portanto, aquele que se considera ateu, não esta negando a DEUS, a FONTE original, porém, antes, nega o próprio conceito que construí a respeito do que procura negar. Dá um tiro em si mesmo enquanto regozija-se com sua postura rebelde, razoável e “sensata”. Neste sentido, em muitas ocasiões, estamos negando a nós mesmos a partir das crenças que sustentamos! A mente é uma grande forma de superstição. Quando isto irá cessar?  Ou melhor, como o amor incondicional pode florescer no coração de um ser submerso em conflitos e auto-enganação?
                       Existem muitos livros, autores, e outros tipos de informação reservada para quem se interessa e busca informações a este respeito, mas o que eu quero deixar claro é que toda e qualquer forma de domínio e escravidão começa na MENTE do individuo. Germina no “invisível” para então manifestar-se no “visível”, o mundo sensorial. Precisamos enxergar isso com o coração, meus amigos, nosso eterno companheiro. Nosso irmão maior. Nosso anjo da guarda. Não é nada fácil identificar o lugar que realmente ocupamos neste mundo, onde pertencemos, para onde vamos e o que devemos fazer, pois tudo aquilo que podemos perceber como “realidade” é apenas um horizonte entre tantos outros possíveis que se apresentam a nós homens. Disse, certa feita, um velho índio Yaqui do noroeste do México: “tudo é um entre um milhão de caminhos”, mas apenas “os caminhos que possuem coração são verdadeiros”. Deixo claro que não estou reduzindo o assunto a qualquer teoria subjetivista, mas tentando, com certo esforço, visualizar até que ponto nossa escravidão mental chegou! Repito: pensar é diferente de perceber. O reino mais perigoso dos homens é o invisível. O “mundo das causas” é apreendido apenas pela alma e pelo coração, jamais pelos olhos e pela mente mundana.
                        Realmente gostaria de ser capaz de ensinar um caminho à humanidade ou, pelo menos, a algum amigo ou outros buscadores como eu, mas tamanha é a pretensão do homem que se diz capaz de ensinar.  Sou escravo de minha mente, de meu ser, de meus sentidos. Enquanto persistir a luta no interior da mente humana não prevalecerá a paz no coração dos homens. Cegos não podem guiar cegos, mas tudo isso pode ter um fim a partir de um simples ATO. VIVER é um ato de coragem.  No entanto, um coração desprovido de paz oculta uma mente que queima e ferve por dentro. As chamas, todavia, também podem ser usadas a nosso favor, meus amigos. Os Xamãs, feiticeiros, Bruxos, alquimistas e magos de todos os tempos fizeram isso! As forças da natureza existem e podem ser usadas para o bem ou para o mal. Esta é uma escolha que cabe a cada um realizar. Uma vez eu li nas páginas de um livro que a condição especial para nos transformarmos em verdadeiros homens, ou seja, “homens-de-conhecimento”- qualidade dos seres desprovidos de medo e dotados de sabedoria real- devemos, antes de qualquer coisa, agir como Guerreiros, pois todos os atos de um Guerreiro são sublimes e finais. O Guerreiro age como se a morte estivesse imediatamente a sua frente, portanto, não haveria tempo a perder e suas ações deveriam partir deste principio. Dizia o livro: "Se não há como saber se eu tenho apenas mais um minuto de vida, devo agir como se cada instante fosse o último. Cada ato é a última batalha do Guerreiro. Então tudo deve ser feito impecávelmente. Nada pode ser deixado pendente".
                     O fato é que nos defrontamos com o destino a cada dia que acordamos. Nascemos e sentimos o ar entrando por nossos pulmões pela primeira vez, que sensação incrível! Nosso coração bate e logo começamos a andar, o mundo é colorido e de repente crescemos, morremos e a roda da natureza não para, é a dança de Shiva encenada pelo Cosmos. O mundo é uma terra de gigantes! O céu é azul e sem fim, mas porque somos tão pequenos? Por que ainda não aprendemos a andar? Quem se recorda da primeira vez que avistou o sol, a imensidão da praia ou as estrelas da noite? Lembro-me de quando era criança e passava horas olhando em direção ao céu noturno, para as estrelas e, de algum modo, não me sentia sozinho. Hoje percebo que não era o céu, mas o INFINITO que dialogava comigo naqueles momentos e até hoje esta é a idéia mais próximo que tenho da eternidade: o céu e as estrelas. Esta tudo em nosso inconsciente, basta procurar e acessar as vidas ocultas sobrevivendo em nosso peito. Esta tudo lá. Basta cruzar o limiar do conhecido, a ponte do medo, do esquecimento, da dúvida. Todo o infinito esta presente nestas descobertas. São simples, singulares e profundas, como uma música bela e perpétua girando pelo mundo.
                       Somos como crianças e quanto mais aprendemos, mais nos sentimos pequenos, minúsculos, quase invisíveis como na infância, no início da jornada. Porque o final é tão semelhante ao princípio? O universo é algo estranho e age misteriosamente, em silêncio. Então, novamente nos levantamos e o mundo começa a girar. Não para, não cessa e de repente já estamos adolescentes, adultos, velhos e vemos amigos, pais e irmãos, enfim, gerações inteiras se passarem frente á nossos olhos e a impressão é que, no fundo, já passamos por tudo isso. Sensação estranha essa. O universo é cíclico e impecável. O mundo nos desafia, nos condena, nos impõe condições, ou seria apenas nossa impressão a respeito dele? Para mim a liberdade reside no poder de contemplação do ser humano. Bem-aventurados são aqueles que podem contemplar. Algumas pessoas perdem este poder, o tempo o consome, por isso morrem e definham aos poucos. Não quero isso pra mim, nem para a humanidade. Não podemos perder nossa capacidade de contemplação! Aceitar nosso destino, aceitar a nós mesmos, é uma honra, é um ato impecável, exige força, requer coragem e virtuosismo. Viver só pode ser destino. Realmente não sei se é possível encarar a vida de outra maneira. Somos homens e devemos aceitar nosso destino como ele é, destituídos de quaisquer juízos de valor. Assumir o controle da própria vida, portanto, do próprio destino, é uma tarefa reservada somente aos Guerreiros de puro coração, do contrário, tudo não passara de uma crença ou imaginação sobre a vida. Um fantasma aterrorizante. Não precisamos viver como idiotas, cegos ou lunáticos neste mundo, estes já pululam aos montes pelo planeta. A maior distinção de um homem é a virtude, o silêncio e o auto-controle. Então, inevitavelmente, irrompe-se o questionamento: “meu Deus, onde estão estes homens sublimes que a história ocultou”? Hoje, meus amigos, eu posso dizer que os seres sublimes nunca se afastaram de nós! Eles estão no limiar do coração humano, apenas aguardando um gesto nobre de nossa parte para encontrá-los! Isto pode acontecer agora, neste exato momento, ou daqui alguns éons, eras intermináveis, milhares de milhões de anos! Depende somente de nós, mas primeiro aprendamos a andar com nossas próprias pernas. É trágico como alguns seres humanos apenas se modificam corporalmente, a mente, contudo, continua infantil, frágil e vulnerável. Não amadurece. Sem dúvidas a maturidade requer alguns sacrifícios. Viver é sacrifício. Acredito que só podemos começar a viver realmente quanto começamos a encarar nossos medos no recinto do silêncio interior como uma batalha prazerosa, cotidiana, sempre crescente e radical. O desafio de nossas vidas deve ser conquistado enquanto respiramos, enquanto choramos, sorrimos e compartilhamos nosso amor: a força mais poderosa de todo o universo.  Assim vamos, pouco a pouco, nos aprofundando em nós mesmos e despertando, passo a passo, nossos anjos e demônios interiores e então, é incrível, tudo se parece estranho e curioso, como na infância onde tudo é uma descoberta, tudo é uma surpresa, poucos conceitos e muita intuição. Estamos velejando, o vento sopra e o mergulho final não cabe em palavras: é belo demais! DEUS é a beleza intrínseca de tudo que existe.  Até onde podemos chegar nesta vida, meus amigos, até onde somos capazes de caminhar em direção ao desconhecido, em direção ao infinito? Tudo é um gesto, uma auto-entrega, uma doação, um sacrifício, um ato de coragem. Que possamos viver como guerreiros daqui para frente, agora e para o sempre. Obrigado por seu tempo, por sua dedicação, por sua leitura. Somos jovens, meus irmãos.



                                                      

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

 Texto Representativo da Obra de Krishnamurti


Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho. Ontem estivemos tratando do sofrimento e do findar do sofrimento. Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão. Pouquíssimos de nós realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram profundamente. Será possível liquidar, de vez, o sofrimento? Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não muito conscientemente, mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem acabar. Enquanto o sofrimento não termina, não pode haver amor.

O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, movimentos religiosos - ou, então, acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis.

Será que podemos investigar, a fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema sem fugir dele? Suponhamos que perca meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando uma dor imensa, descubra que sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem suportar a situação e, por isso, fujo dela. Há inúmeras formas de fuga - religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso permanecer com o que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia preciosa, de fino acabamento? Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de fugir dela; sua beleza nos atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o tempo todo. Se, da mesma forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer de julgamento ou fuga, ficar com a tristeza... nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos liberta completamente daquilo que produziu a dor. Voltaremos a isso depois.

Desejamos também considerar o que é a beleza - não a beleza de uma pessoa nem de quadros e estátuas de museus, nem os mais remotos esforços do homem para transmitir seus sentimentos através da pedra, da pintura ou de um poema, mas indagar a nós mesmos o que é a beleza. Talvez a beleza seja a verdade. Talvez seja o amor. Sem compreendermos a natureza e a profundidade dessa coisa extraordinária que é a beleza, jamais chegaremos ao que é sagrado. Examinemos, portanto, a questão da beleza.

O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve contra o céu azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu belo recorte contra o céu azul apaga toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, não há "ninguém" a olhar. Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento egocêntrico do nosso viver. Certamente que já devem ter notado isso. Já observaram uma criança com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras (o que é normal), e então damos um brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o brinquedo, ela permanece tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também quando vemos algo extremamente belo - a beleza nos absorve? Significa isso que só há beleza quando cessa a luta do eu, quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso? Se não ficamos absorvidos nem impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou um vale cheio de sombras; se não somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza sem o ego? Quando o eu está presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o amor e a beleza estão sempre juntos - não são duas coisas separadas.

Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar. Sejamos ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos nós; todos vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos sempre com medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é o viver, o que é a nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas energias de muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas. Pode ser que sejam ricos, muito competentes, que sejam especialistas, um grande cientista ou um homem de negócios; pode ser que tenham poder, posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso não foi um desperdício? Toda essa lida, sofrimento, essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o homem acumulou (deuses, santos, etc.), não será tudo isso um desperdício? Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a si próprio. Ninguém pode responder por nós. Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá no fim da vida; nós a colocamos o mais longe possível - depois de muito tempo. Mas, ainda que seja uma longa jornada, temos de morrer. E o que é isso a que chamamos viver - ganhar dinheiro, ir ao escritório das nove às cinco? E com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão, desesperança, depressão. Mas será que toda essa existência a que chamamos vida, viver (essa imensa vicissitude do homem com seu conflito sem fim, decepção, degradação) - será isso viver? Mas é a isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos familiarizados, essa é a nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo que pensamos, acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas. Estamos apegados à família, ao dinheiro, aos conhecimentos, às crenças com as quais temos convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo isso. E a morte vem e diz: "Esse é o fim de tudo, meu velho".

Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos, reunimos - nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: "Nada mais lhe pertence." É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido. Podemos inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida. Mas nunca indagamos o que nasce na vida seguinte. O que renasce é um feixe de memórias.

A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver (que é conflito e tudo o mais) do morrer? Por que essa divisão? Existe essa divisão quando há apego? Podemos viver no mundo moderno com a morte? Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego (e isso é a morte) enquanto vivemos. Estou apegado à casa em que vivo - comprei a casa por um bom dinheiro e apego-me ao mobiliário, aos quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e acaba com tudo. Mas será que podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no fim de cada dia, eliminando todo nosso apego? Isso é o que significa morrer. Como costumamos separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos juntos, contudo, a vida e a morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral em que cessa todo conhecimento como memória.

Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certo domínio, no domínio da atividade física. Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário mas estar livre do velho conhecimento? Pode o cérebro estar livre para funcionar perfeitamente noutra dimensão? Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam; morram no fim do dia.

E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; viver e morrer não são duas coisas diferentes. Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem escutando com muita atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade. E, imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer para tudo que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças, temores, ansiedades, infortúnios - será que podemos pôr fim a tudo isso diariamente? E aí descobrimos que estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.

Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente, coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será que podemos viver assim no mundo de hoje - liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no futuro, sem esperar por algo "melhor", ter, portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e morrendo a cada momento? Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há um milhão de anos - o viver e o morrer. Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e não reagir a ele, dizendo: "É, mas eu creio na reencarnação" - pois, nesse caso, termina o diálogo entre nós.

Estamos apegados a um mundo de coisas - ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao dinheiro, às crenças com que temos vivido, aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí afora. Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória - não somente a memória dos conhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo? Isso é um fato. Aí chega a morte e diz: "Acabou o seu apego." E nós tememos tal coisa, tememos ficar completamente libertos disso tudo. A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos. Podemos inventar e dizer: "Sim, mas eu continuo na próxima vida." Mas o que é que continua? Compreendem a pergunta? Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de continuidade a não ser a da sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a continuidade das crenças - tudo que o pensamento criou?

O pensamento é limitado e, assim, cria conflito - já vimos isso. E o eu, o ego, a persona é um complicado feixe de memórias, antigas e recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto do conhecimento. O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc. Isso é que é o eu. O eu pode inventar que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do pensamento. E o pensamento é sempre limitado. Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler livros nem estudar as filosofias; podem perceber claramente por si próprios que são um feixe de memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis porque ficamos atemorizados. A questão, portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?

Agora devemos também examinar juntos o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade, sofrimento e tudo mais? O que é o amor? E sem esse quê, esse perfume, essa chama (ainda que sejam ricos, tenham poder, posição, importância) sem amor, serão apenas uma concha vazia. Precisamos, por conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria guerras? Se amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando existe ambição? Por favor, enfrentem tudo isso. Mas não conseguimos porque estamos presos a uma rotina, à sensação repetida de sexo etc.

O amor nada tem que ver com prazer, com sensação. O amor não provém do pensamento; não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro. É algo que está completamente fora do cérebro, pois o cérebro, por sua própria natureza, é instrumento da sensação, das reações nervosas etc. Quando há sensação, não existe amor. O amor não é coisa da memória.

E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião. Essa é uma questão muito complexa. Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que esteja além do mundo físico, além da existência diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores, pedras - e os aldeões que vivem longe desta feia e detestável cidade ainda veneram pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe alguma coisa sagrada e, então, chega o sacerdote e diz: "Vou-lhe mostrar" - é exatamente o que faz o guru. Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada disso; são ateus e se dizem humanitaristas. Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há algo fora do tempo, além do pensamento. Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso cérebro, nossa razão, nossa lógica para averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é possível viver uma vida religiosa neste mundo moderno.

Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as descartamos totalmente - não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou determinada autoridade que se diz espiritual. Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes que cometemos: inventar um mediador entre nós e a verdade.

Quando indagamos o que é religião, nessa própria indagação já estamos vivendo religiosamente; não no fim dela. No processo mesmo de olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé, nessa própria investigação já estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.

Tratando-se de assunto religioso, parece que perdem a razão, a lógica, o bom senso. Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o homem criou - deuses, salvadores, gurus e toda sua autoridade; precisamos eliminar, completamente, tudo isso. Nada disso é religião; é apenas a autoridade que alguns poucos assumem. Nós é que lhes conferimos autoridade.

Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida, criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que inventamos deuses. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e todo esse circo a que damos o nome de religião. Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o pensamento que criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas ponham em dúvida essa revelação. Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o bom senso, perceberão como acumulam superstições - e nada disso, obviamente, é religião. Será que podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o cérebro, capaz de viver religiosamente? Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar nada, sem criar ilusões, e enfrentar o medo? O medo psicológico pode desaparecer completamente quando ficamos com ele, sem fugir dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz sobre o medo, um forte jorro de luz; o medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já não há mais deuses, já não mais rituais, pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas que o pensamento inventa nada têm que ver com religião, pois o pensamento não passa de um processo material resultante da experiência, do conhecimento e da memória. É o pensamento que inventa todo o palavrório e estrutura das religiões organizadas, que já perderam totalmente a significação. Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa? Será que querem fazer isso? Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião.

E haverá alguma coisa que ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta mas, se o pensamento inventar que existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo material. O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais. O orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro a atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do tempo e do espaço? Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo imensamente sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é que já deram o primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião. Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar.

Assim, o que significa a meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir do tumulto, ter uma mente silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica? E, para ficarem atentos, para manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema, um método, um processo. Sentam-se de pernas cruzadas e repetem um mantra qualquer. Disseram-me que essa palavra, etimologicamente, significa "ponderar", "não vir a ser", "absorver", "eliminar toda atividade egocêntrica". Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e continuamos vivendo egocentricamente, egoisticamente, pois mantra perdeu o significado.

O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa - uma mente ou um cérebro tranqüilo, um estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz "Quero dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo?" Qual é a diferença entre os dois? Ambos estão buscando alguma coisa. Só que a busca de um classificamos de espiritual e a do outro, de mundana. Não obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é meditação; meditação nada tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto da vontade.

Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem isso? Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado - causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço? O orador afirma que há. Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar, indagar, assim como o orador indagou, duvidou, rejeitou. Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para examinar isso, precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que tenta alcançar o ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é necessário compreender o som. Som e silêncio são inseparáveis.

Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o som é a batida do coração; o universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o firmamento está cheio de som. E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos o som, o próprio ato de escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som. A meditação, portanto, não é algo planejado, organizado. A meditação apenas é. Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os ressentimentos, livre de tudo que já acumulamos - temores, ansiedades, solidão, desespero, sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e o primeiro passo é o último passo. Se derem o primeiro passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro passo porque não queremos ser livres. Queremos depender - do poder, de pessoas, do meio-ambiente, de nossa experiência, do conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo.

No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão. A compaixão tem sua própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria verdade. Quando essa inteligência está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar - da cessação do medo, do findar do sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra, agir. Ouvem tudo isso (que é verdadeiro, lógico, sensato, racional) mas não agem de acordo com isso. Vão para casa e começa tudo de novo - as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim, perguntamos: qual é a finalidade de tudo isso? Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não agimos, desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando a vida. E a vida é algo muitíssimo precioso - é a única coisa que temos. E acontece que perdemos também contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que somos da natureza. Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas. Estamos a nos destruir uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida.

Quando percebemos toda essa coisa não apenas intelectualmente nem verbalmente, então vivemos uma vida religiosa. Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada disso é vida religiosa. A vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor. Podemos amar uma pessoa (esposa ou marido), mas aquele amor é para todos os seres humanos, não se destina a uma só pessoa, não é restritivo. Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro haverá algo que transcende o tempo. E aí estará a bênção - não nos templos, nas igrejas nem mesquitas. Essa bênção estará onde estivermos.

Krishnamurti. Bombaim. 10/02/1985. K. F. Bulletin 54 (1988) - Carta de Notícias. Janeiro-Dezembro 1991. ICK.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A linguagem do corpo por Stanley Keleman


A vida produz formas. Essas formas são parte de um processo de organização que dá corpo às emoções, pensamentos e experiências, fornecendo-lhes uma estrutura. Essa estrutura por sua vez ordena os eventos da existência. As formas evidenciam o processo de uma história protoplasmática que caminha para uma forma pessoal humana – concepção, desenvolvimento embriológico e estruturas de infância, adolescência e vida adulta. Moléculas, células, orgãos são as formas iniciais do movimento da vida. Mais tarde a forma da pessoa será moldada pelas experiências internas e externas de nascimento, crescimento, diferenciação, relacionamentos, acasalamento, reprodução, trabalho, resolução de problemas e morte. Ao longo de todo esse processo, a forma é impressa pelos desafios e tensões da existência. A forma humana é marcada pelo amor e pelas decepções.

Se pudessemos fotografar nossa vida e projectá-la quadro por quadro, perceberíamos que somos sequências móveis de formas emocionais variadas.
À medida que dialogamos com as formas que nos cercam – primeiro o útero; depois com nossa mãe e em seguida com muitas outras – constituimos os estratos das formas emocionais.

“ Anatomia é destino” afirmou Freud. O processo anatómico constitui uma sabedoria profunda e poderosa que dá origem a imagens internas de sentimentos. As formas externas do corpo e as formas internas dos orgãos falam-nos da motilidade celular, da organização e do movimento da psique e da alma.

A anatomia é o alicerce das relações humanas. O que acontece dentro de nós, eventualmente também ocorre fora. Os relacionamentos humanos são interacções somáticas de pulsação emocional e forma comportamental – dentro e fora de nós.

Relacionamo-nos com os outros por intermédio das formas que construimos. As experiências emocionais da vida criam forma e formato. A forma dá às emoções, pensamentos e sentimentos um escoadouro para sua expressão e satisfação ou inversamente para a inibição e a dor. Com a nossa forma interagimos com o mundo. À medida que nos abrimos para o contacto com os outros, amor, intimidade e cooperação, podemos criar relacionamentos para reforçar ou compensar a nossa forma individual.

Cada um de nós se defronta com um outro. Esse outro interage connosco, responde às nossas acções e por sua vez provoca respostas em nós. Nossa humanidade básica depende desse sentimento de ligação. Um vínculo estabelece-se através de um sistema de poderosas conexões – superfícies corporais, linguagem, olhos, sentimentos, intimidade emocional, amor e sexualidade. Nós tocamos-nos a partir de poços do desejo e dos labirintos da memória dos primeiros cuidados – sucesso ou fracasso no amar e ser amado. Profundidade, interioridade e união dão início a um vínculo que derrete as camadas de cautela e medo, as bravatas e os anseios, quando compartilhamos a nossa verdade somática.

O contacto com o outro é mais do que superfície com superfície, é também interior com interior. O contacto é estratificado, das superfícies de comunicação, da camada externa da pele, à segunda camada do gesto e acção, até à terceira camada de motilidade visceral. Contacto, vulnerabilidade e intimidade envolvem interacções entre superfícies e profundezas.

O amor e a intimidade mudam a expressão emocional permitindo experiências que fazem cair defesas. Isto permite-nos sentir o sabor da satisfação terna. Ao longo do tempo, à medida que o amor e intimidade continuam e se desenvolvem criam-se formas apropriadas. Das profundezas, camada por camada emergem novas formas somáticas.

Anatomia é destino enquanto processo somático. A anatomia diz respeito a um processo vivo e dinâmico, um mistério, uma iniciação, a forma da experiência que dá origem ao sentimento, ao pensamento e à acção. Refere-se a nós, como formas de sentir. Refere-se à história genética, embriológica e pessoal. A anatomia, na verdade, refere-se à forma que nos foi dada pela natureza, às que tivemos que criar como partes de uma sociedade ou família específicas e às que estamos moldando neste momento.

Conhecer a anatomia emocional é experimentar as dores do desejo e da decepção, os conflitos do contacto e a luta pela satisfação, o sabor da intimidade e da individualidade, o conhecimento do amor condicional e incondicional.